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Despejou o resto da garrafa de vinho pelo gargalo. Largou a garrafa que tombou na mesa, e caiu no chão, desfazendo-se em mil pedaços. Olhou rindo para o chão. Turvos os cristais pareciam o seu coração - mil pedaços, esmagados, pisados, partidos encharcados em vinho,
cheios do vazio que outrora foi promessa.
Ele, o inerte. Ele, o deixa andar, não decide, não impõe, a vida vai sozinha. Ele o amante do indiferente, casado com o mais ou menos. Ele o nem feliz nem infeliz,
E eis-me aqui rindo
Esboça um esgar de escárnio, regado de vinho, embriagado na miragem da posse do que não se tem
Amando sem amar,
amando só no verbo querer.
Vai à janela, senta-se na cadeira e espreita pelos binóculos a vida do lado de lá. Ela ali, real ou não, ela ali, numa vida que não o inclui, ela a vida,
a fantasia?
ela em carne, falando ao telefone, mexendo na panela, ela ali numa vida que não só não o inclui, como não o sabe se quer.
Acende um cigarro e atira os binóculos pela janela. Deixa entrar o frio húmido de dezembro. Inspira bem fundo aquele ar novo.
E ela ali, saltando de segundo em segundo numa vida que o exclui,
e ele aqui, sem segundos para contar, numa vida embriagada, irreal, na espera eterna pelo que nunca vem, nunca muda.
Levanta-se, sente uma tontura, apoia a mão na parede, respira fundo e espera que lhe passe o enjoo que lhe sobe na garganta.
Endireita-se, conta até dez devagar
Um, dois, três...
Devagar a calma a volta a si. Lamenta ter atirado os binóculos pela janela, aproxima-se novamente, encosta o nariz no vidro, cerra os olhos, mas já não vê mais do que um amontoado de luzes, um amontoado de lares com vida sem imagem, sem personificações, sem alma
Que alma?
Lamenta a bebedeira. Lamenta o assim assim. Lamenta a vida sem esforço nem empenho, sem rumo, sem valor.
E chora sem voz, aspirando a vida do outro lado na janela, saltando de segundo em segundo, cumprindo cada ruga obesa de tempo vivido, tempo passado sem acasos, sem ocasiões.
Sai porta fora, decidido pela primeira vez, impulsionado pela euforia triste de duas garrafas de vinho. Olha em frente, e caminha rápido na rua vazia, nua, fria, vira a esquina, tropeça numa pedra, cai mas levanta-se, agarrado à angustia, agarrado à decisão, agarrado ao amor do que não tem
do que terá
Numero 65, 3º esq
Toco?
Seria esquerdo ou direito?
Toca.
A porta abre e ele sobe sem pensar, sobe a tropeçar,
Mão na cintura e o beijo que não deu, na promessa do que não foi,
levo-a pela mão e conto-lhe sobre o sol e a chuva, falo-lhe de amor.
Para ofegante no 3º andar
Esquerdo ou direito?
A porta abre e do lado de lá pergunta-lhe uma voz masculina
- Posso ajudar?
O beijo que não deu na promessa que não cumpriu
- Desculpe enganei-me.
Na porta, na vida, no vinho e no amor.